Caricaturas de Maomé
Não é por acaso que só três meses depois de terem sido publicadas, pela primeira vez, num jornal dinamarquês, as caricaturas de Maomé inspiraram um movimento avassalador de fúria fundamentalista em muitos países, designadamente na Europa. É que, entretanto, foi-se desenvolvendo o confronto entre o Irão e o Ocidente por causa da "bomba islâmica" e que outra bomba rebentou o triunfo esmagador do Hamas na Palestina. Os discursos incendiários do Presidente iraniano, negando o Holocausto e apelando à destruição de Israel, foram sublinhados nas urnas de Gaza e da Cisjordânia, onde o partido vencedor mantém o objectivo de erradicar do mapa o Estado hebraico. Já a Síria acolheu algumas das manifestações mais veementes contra a "blasfémia", exactamente quando se apertava o cerco internacional ao regime de Damasco, acusado de patrocinar assassinatos políticos no antigo "protectorado" libanês. Ora, foi precisamente no Líbano - que ainda há poucos meses começara a libertar-se da tutela síria - que se registaram as acções de rua mais violentas e destruidoras contra a Dinamarca e o Ocidente. São coincidências a mais. Está claro que as caricaturas do profeta não passam de um mero pretexto nesta história, por mais evidente que seja a irresponsabilidade imbecil do jornal dinamarquês que começou por reivindicar em editorial o direito de "desafiar, blasfemar e humilhar" e acabou, de rabo entre as pernas, pedindo perdão pela ofensa às crenças islâmicas. Em todo o caso, os fundamentalistas já podem cantar vitória criaram um novo tabu e um novo factor de intimidação à liberdade de imprensa como valor essencial das sociedades seculares e democráticas. A prova está nas reacções temerosas e culpadas das diplomacias ocidentais, incluindo a americana, numa quase admissão da legitimidade da violência cega do fanatismo islamita. Só faltava desculparem-se pelo facto de a liberdade de imprensa ser politicamente incontrolável em democracia, o que os fundamentalistas, obviamente, se recusam a aceitar. A hipocrisia sinistra do islamismo fanático e das ditaduras muçulmanas chega a ser praticamente absolvida pelas temerosas lideranças ocidentais. A esse respeito, é sintomática a complacência com que foram tratados os manifestantes que em países como o Reino Unido exibiram apelos explícitos ao assassinato dos autores das "blasfémias". Será admissível que um qualquer adepto do uso indiscriminado do terror em nome do profeta - como fazem a Al-Qaeda e outros movimentos extremistas - tenha o direito de reclamar a morte de quem se limita, no fundo, a representar essa situação numa caricatura? O turbante de Maomé transformado em bomba não é, no fundo, a própria imagem de marca reivindicada pelo terrorismo islâmico? Claro que a questão ultrapassa qualquer padrão de racionalidade, até porque a esmagadora maioria dos que se manifestaram através do mundo islâmico não conheciam de todo o pretexto próximo que supostamente alimentou a sua fúria. Aí chegamos ao outro lado da história, que tem a ver com o desastre total da estratégia americana - e, por omissão, europeia - no Médio Oriente, designadamente no conflito entre Israel e a Palestina, e no Iraque. A cruzada iraquiana de Bush não só ofereceu de bandeja ao terrorismo islâmico uma base de irradiação territorial, como favoreceu o reforço da teocracia xiita iraniana (aliada do núcleo duro do actual Governo de Bagdad) e a sua influência regional, estimulando também o triunfo do Hamas nas eleições palestinianas. Não por acaso, o último discurso de Bush sobre o "estado da Nação" reflecte, dramaticamente, até que ponto a Administração americana perdeu a iniciativa para enfrentar ameaças mil vezes mais perigosas, como é o nuclear iraniano, do que as fictícias armas de destruição maciça de Saddam Hussein. Entradas de leão, saídas de sendeiro... A utopia simplista de democratização do Médio Oriente, perseguida com obstinada cegueira ideológica pelos missionários neoconservadores, teve um previsível e arrasador efeito de boomerang, como agora se verificou na Palestina. A democracia não é um valor abstracto e que se possa impor de fora a sociedades não seculares, tribais e confessionais. Como escreve Jean Daniel, a "ideia de que a repetição das consultas eleitorais pode garantir o bom uso da liberdade não é de nenhuma utilidade quando um presidente não é eleito senão para interpretar os mandamentos de Deus". E assim se passa das caricaturas de Maomé à caricatura da democracia.
Por: Vicente Jorge Silva |
Caricaturas de Maomé
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